Hannah Arendt | A Pensadora da Liberdade

 

Conhecida como A PENSADORA DA LIBERDADE, Hannah Arendt viveu as grandes transformações do poder político do século XX. Estudou a formação dos regimes AUTORITÁRIOS/TOTALITÁRIOS instalados nesse período e defendeu os direitos individuais, contra as “SOCIEDADES DE MASSAS” e os crimes contra pessoa.

Alemã de origem judaica Hannah Arendt (1906 – 1975) formou-se em filosofia em Heidelberg, período em que foi aluna do filósofo Martin Heidegger. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária. Recusava-se ser classificada como “filósofa” e também se distanciava do termo “filosofia política”; preferia que suas publicações fossem classificadas sob o tema “teoria política”. Entretanto, ela continua sendo estudada como filósofa, em grande parte devido a suas discussões críticas de filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Immanuel Kant e Martin Heidegger, além de representantes importantes da filosofia moderna como Maquiavel e Montesquieu. Devido aos seus trabalhos sobre filosofia existencial e sua reivindicação da discussão política livre, Arendt tem um papel central nos debates contemporâneos.

Suas obras mais conhecidas são: As origens do totalitarismo (1951), A condição humana (1958) e Eichmann em Jerusalém (1963). Este último reúne os cinco artigos que escreveu sobre o julgamento de Eichmann, que cobriu para o jornal The New Yorker. Nesse livro, Eichmann, não é retratado como um demônio (como o descreviam muitos ativistas judeus) mas alguém terrível e horrivelmente normal. Um típico burocrata que se limitara a cumprir ordens, com zelo, por amor ao dever, sem considerações acerca do bem e do mal. No livro, Arendt aponta ainda a cumplicidade das lideranças judaicas com os nazistas. Esta perspectiva lhe renderia duras críticas das organizações judaicas, além da ameaça de ser excluída da universidade em que lecionava na época.


 Texto:  A condição Humana

por Hannah Arendt*

A vita activa, ou seja, a vida humana na medida em que se empenha ativamente em fazer algo, tem raízes permanentes num mundo de homens, ou de coisas feitas pelos homens, um mundo que ela jamais abandona ou chega a transcender completamente. As coisas e os homens constituem o ambiente de cada uma das atividades humanas, que não teriam sentido sem tal localização; e, no entanto, este ambiente, o mundo ao qual viemos, não existiria sem a atividade humana que a produziu, como no caso das coisas fabricadas; que dele cuida, como no caso das terras de cultivo; ou que o estabeleceu através da organização, como no caso do corpo político. 

Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos. Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos; mas a ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens. A atividade do labor não requer a presença de outros, mas um ser que “laborasse” em completa solidão não seria humano, e sim um animal laborans no sentido mais literal da questão. Um homem que trabalhasse e fabricasse e construísse num mundo habitado somente por ele mesmo não deixaria de ser um fabricador, mas não seria um homo faber: teria perdido a sua qualidade especificamente humana e seria, antes, um deus – certamente não o Criador, mas um demiurgo divino como Platão o descreveu em um de seus mitos. 

Só a ação é prerrogativa exclusiva do homem; nem um animal nem um deus é capaz de ação, e só a ação depende inteiramente da constante presença de outros. Esta relação especial entre a ação e a vida em comum parece justificar plenamente a antiga tradução do zoom politikon de Aristóteles como animal socialis, que já encontramos em Sêneca e que, até Tomás de Aquino, foi aceita como tradução consagrada: Homo est naturaliter politicus, id est, socialis (“o homem é, por natureza, político, isto é, social”). 

Melhor que qualquer teoria complicada, esta substituição inconsciente do social pelo político revela até que ponto a concepção original grega de política havia sido esquecida. Para tanto, é significativo, mas não conclusivo, que a palavra “social” seja de origem romana, sem qualquer equivalente na língua ou nos pensamentos gregos. Não obstante, o uso latino da palavra societas tinha também originalmente uma acepção claramente política, embora limitada: indicava certa aliança entre pessoas para um fim específico, como quando os homens se organizavam para dominar outros ou para cometer um crime. É somente com o ulterior conceito de uma societa generis humani, uma “sociedade da espécie humana”, que o termo “social” começa a adquirir o sentido geral de condição humana fundamental.

Não que Aristóteles ou Platão ignorassem ou não dessem importância ao fato de que o homem não pode viver fora da companhia dos homens; simplesmente não incluíam tal condição entre as características especificamente humanas. Pelo contrário, ela era algo que a vida humana tinha em comum com a vida animal – razão suficiente para que não pudesse ser fundamentalmente humana. 

A companhia natural, meramente social da espécie humana era vista como limitação imposta pelas necessidades da vida biológica, necessidades estas que são as mesmas para o animal humano e para outras formas de vida animal. Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política não apenas difere mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo centro é constituído pela casa (oikia) e pela família. 

O surgimento da cidade estado significa que o homem recebera, “além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bio politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (Koinon)”. Não se tratava de mera opinião, mas de simples fato histórico: precedera a fundação da polis a destruição de todas as unidades organizadas à base do parentesco, tais como a phratria e a phyle. 

De todas as atividades necessárias e presentes nas comunidades humanas, somente duas eram consideradas políticas e constituintes do que Aristóteles chamava de bio politikos: a ação (práxis) e o discurso (lexis), dos quais a esfera dos negócios humanos (taton anthropon pragmata, como chamava Platão), que exclui estritamente tudo o que seja apenas necessário ou útil. Contudo, embora certamente só a fundação da cidade-estado tenha possibilitado aos homens passar toda sua vida na esfera pública, em ação e em discurso, a convicção de que estas duas capacidades humanas são a fim uma da outra, além de serem as mais altas de toda, parece haver precedido a polis e ter estado presente no pensamento pré-socrático. 

A estrutura de Aquiles homérico só pode ser compreendida quando se o vê como “o autor de grandes feitos e o pronunciador de grandes palavras”. Diferentemente do conceito moderno, essas palavras não eram tidas com grandes por exprimirem grandes pensamentos; pelo contrário, como percebemos pelas últimas linhas de Antígona, talvez seja a capacidade emitir “grandes palavras” (megaloi logoi) em resposta a rudes golpes que nos ensine a reflexão na velhice. 

O pensamento era secundário no discurso; mas o discurso e a ação eram tidos como coevos e coiguais, da mesma categoria e da mesma espécie; e isto originalmente significava não apenas que quase todas as ações políticas, na medida em que permanecem fora da esfera da violência, são realmente realizadas por meio de palavras, porém, mais fundamentalmente, que o ato de encontrar as palavras adequadas no momento certo, independentemente da informação ou comunicação que transmitem, constitui uma ação. 

Somente a pura violência é muda, e por este motivo a violência, por si só, jamais pode ter grandeza. Mesmo quando, relativamente tarde na antiguidade, as artes da guerra e do discurso (rhetorike) emergiram como os dois principais tópicos da educação, tal evolução ainda se valia dessa experiência e dessa tradição anteriores, pré-polis, e a elas permaneceu sujeita. Na experiência da polis que, com alguma razão, tem sido considerada o mais loquaz dos corpos políticos, e mais ainda na filosofia política que dela surgiu, a ação e o discurso separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais independentes. A ênfase passou da ação para o discurso, e para o discurso como meio de persuasão não como forma especialmente humana de responder, replicar e enfrentar o que acontece ou o que é feito. O ser político, o viver numa polis, significa que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência. 

Para os gregos, forçar alguém mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram métodos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família, na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado a organização doméstica. A definição aristotélica do homem como zoon politikon não era apenas alheia e até mesmo oposta à associação natural da vida no lar; para entende-la inteiramente precisamos acrescentar-lhe a sua segunda e famosa definição do homem como zoon logon ekhon (“um ser vivo dotado de fala”). 

A tradução latina dessa expressão animal rationale resulta de uma falha de interpretação não menos fundamental que a da expressão “animal social”. Aristóteles não pretendia definir o homem em geral nem indicar a mais alta capacidade do homem – que, para ele, não era logos, isto é, a palavra ou a razão, mas nous, a capacidade de contemplação, cuja a principal característica é que o seu conteúdo não pode ser reduzido a palavras. Em suas duas mais famosas definições Aristóteles apenas formulou a opinião corrente na polis acerca do homem e do modo de vida político; e, segundo essa opinião, todos os que viviam fora da polis – escravos e bárbaros- eram aneu logou, destituídos, naturalmente, não da faculdade de falar, mas de um modo de vida no qual o discurso e somente o discurso tinha sentido e no decorrer do qual a preocupação central de todos os cidadãos era discorrer uns com os outros. 

O profundo erro de interpretação contido na tradução latina de “político” como “social” talvez não seja tão claro quanto numa discussão em que Tomás de Aquino compara a natureza da lei doméstica com a lei política; o chefe da família, diz ele, tem certa semelhança com chefe do reino; mas, acrescenta, o seu poder não é tão “perfeito” quanto o do rei. De fato, não só na Grécia, e na pólis, mas em toda antiguidade ocidental, teria sido evidente que até mesmo o poder do tirano não era tão grande nem tão “perfeito” quanto o poder com que paterfamilias, o dominus, reinava na casa onde mantinha os seus escravos e seus familiares; e isto não porque o poder do dirigente da cidade fosse igualado e controlado pela combinação dos poderes dos chefes de família, mas porque o domínio absoluto e inconteste e a esfera política dita eram mutuamente excusivas.

*ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. - 10 ed – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.31-37.

Filme: Hannah Arendt - Que apresenta o julgamento de Eichmann em Jerusalém | Duração: 1:53:36 | Legendado | Direção: Margarethe Von Trotta





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